A origem dos conflitos na região dos grandes lagos


Bukavu, 03/09/2003

Ultima noite em Bukavu. Amanha abalamos no "autocarro" Atracco para Kigali. São 6 horas de estrada esburacada e cheia de curvas. Felizmente, mais de metade da viajem é a travessia da floresta tropical de altitude, o espantoso Nyungwe National Park, onde abundam primatas, aves e outras surpresas.
A situação em Bukavu degrada-se. As ultimas informações dão conta de uma 3a rebelião que se forma em Kisangani, mas a ONU prendeu um dos cabecilhas e trouxe-o para aqui. os militares da rebelião anterior, que não ficaram nada satisfeitos com as nomeações dos cargos militares oficiais do novo governo no processo de paz. Esses rebeldes estão a reorganizar-se e a reagrupar-se aqui na região de Bukavu. Vêm-se muitos movimentos de militares nesta altura, principalmente durante a noite. Por outro lado é cada vez mais difícil encontrar civis na rua à noite. É mau sinal!
Boniface, o Prof, foi aconselhado a não dormir em casa nestes dias. Membro influente na comunidade civil, denuncia continuamente os massacres provocados pelos rebeldes. É portanto um personagem incómodo para estas forças rebeldes. tem a cabeça a prémio já há vários anos.
Diz-se por aqui que esta reorganização das forças armadas é comanditada pelo presidente Kagame, ditador chefe de estado do vizinho Rwanda, re-eleito há uma semana com 97% dos votos.
O testemunho de Pascal da sua experiencia no Burundi é revoltante. Na altura do genocídio, Pascal assistiu ao mais horrível dos massacres que não ouso descrever aqui. A comunidade internacional, depois do genocídio no Rwanda ficou particularmente sensível à causa tutsi, mas a realidade não é assim tão simples! Mesmo aqui em Bukavu há conflitos entre Bashis e Baregas. Esta história de conflitos tribais é interminável e serve de pretexto a muitas guerras.

No lago, todos os conflitos se resolvem

Porto de Kalengera, 02/09/2003

Está tudo pronto para a partida. As crianças de Kalengera rodeiam a piroga com olhares fixos de curiosidade. Kalengera é um "porto" de pesca, por outras palavras, a zona do lago onde atracam os barcos de pescadores mas onde não existe nenhuma infra-estrutura especialmente concebida para o efeito. Ao redor deste local cresceu um bairro pobre onde se juntam dezenas de crianças que não vão à escola. muitas delas, órfãs, não têm mais para onde ir...


A realidade aqui é dura. Só os mais fortes resistem, e são estes que têm o controlo do bando. Muitas vezes são os mais velhos, mas nota-se perfeitamente uma estrutura lógica que provavelmente reinava em muitos locais em Africa antes da chegada do homem branco. Com as armas de fogo, os lideres de comunidades inteiras hoje em dia já não são os mais velhos, os mais sábios, mas sim jovens duros que cresceram com uma Kalashnikov entre as mãos. Constatei nas várias comunidades que tive oportunidade de conhecer em várias regiões Africanas, sobretudo nas zonas de conflito, existem enormes dificuldades para reencontrar uma organização social coerente.


De volta ao lago reencontro a paz de espírito que já há alguns dias me faltava. A quantidade de trabalho e as sucessivas interrupções no laboratório deixaram-me extenuado. Apesar de tudo estou satisfeito pela quantidade e qualidade do trabalho realizado.

Hoje transportamos dois estranhos na nossa piroga e amarrada por uma corda, uma segunda piroga esculpida a partir de um enorme tronco de árvore. Os estranhos são um homem de meia idade e uma miúda com os seus 16 anos. O seu penteado é muito comum na região. Existem muitas variantes mas baseam-se quase todas em composições de tranças mais ou menos finas. Algumas formam tranças rígidas que partem da cabeça em todas as direcções em forma de estrela.

Mais uma vez a história de se fazer convidado repete-se e é aceita com toda a naturalidade. Seria impensável recusar a boleia! Em troca, fica a dever um favor, o que me traz à memória aqueles filmes da máfia. Favor paga favor, mas de seguida um pensa que o seu favor valia mais do que o recebera, o que favorece um clima de promiscuidade e mesquinhice que, mais uma vez me faz lembrar o meu país natal. Não sei se com os anos fora do país essa imagem negativa do meu país foi cristalizando, mas estou certo que o facto de ser filho de "retornados" não será alheio a esse sentimento. Esse assunto (os tempos de África) sempre foi tabu lá em casa. Foi preciso vir até aqui para eu entender tudo. Tudo faz sentido agora! Outra revelação extraordinária para mim foi ganhar consciência do facto de eu estar aqui hoje foi tudo menos coincidência!

Intrusos



Bukavu, 02/09/2003

São 7h00 da manhã e acabo de matar a minha co-locatária.
Não suportava mais o barulho que ela fazia durante a noite caminhando entre os meus sacos de plástico que contêm a minha comida.



Nunca imaginei que pudessem existir baratas tão grandes!!!
Por falar em co-locatários, os mosquitos nesta altura contam-se por milhares, e mesmo com mosquiteiro conseguem impedir que consiga dormir. Parecem os aviões de guerra japoneses que se laçam contra a rede a noite inteira. Zzzzzzzzz...


Já as osgas suporto bem, e até simpatizei com elas. Pequeno lagarto simpático de olhos negros grandes e corpo semi-transparente, sempre colado ao tecto ou às paredes. Alimentam-se de mosquitos, o que se agradece.
Parece que já me conhecem as ogas cá em casa, já não se incomodam com a minha presença.

Tudo isto recorda-me em parte a vida nas aldeias remotas no interior de Portugal. Não é muito diferente da vida na cidade daqui! AA grande diferença é que aqui aparecem telemoveis, uns todo o terreno enormes, muitas notas de dólares...
Outra grande diferença é a relação das pessoas com o dinheiro. Um transmontano, por mais simples que seja, guarda o seu dinheiro religiosamente de baixo do colchão, ou naquela pedra escondida da parede do quarto. Para o congolês médio, o dinheiro, essas notas verdes de dólares, são uma benção que permite ter tudo sem sacrifício.
A percentagem de pessoas que trabalham aqui é muito baixa. Uma pessoa que trabalha te a obrigação de alimentar umas 20 pessoas. não me lembro de estar em casa de quem quer que seja que há hora de comer não cheguem visitas: os colas!

- Jambo, habari gani?
(Boa tarde, como estamos?)

- Musuri sana! Karibu kwetu mukubwa!
(Bem obrigado! Seja benvindo caro amigo!)

As boas vindas são incondicionalmente obrigatórias a qualquer momento, segundo o código social. É interessante fazer uma analise comparativa entre o norte da Europa, Africa, e Portugal que está naquele ponto intermédio.
Na Europa do norte ninguém vai a casa de ninguém sem telefonar para avisar, e aqui mesmo que se esteja morto de sono ou com pouco dinheiro, tem que se receber as visitas com dignidade e oferecer-lhes comida.
No laboratório passa-se exactamente a mesma coisa. É impossível estar 15 minutos a trabalhar sem ser interrompido por alguém que não tem nada o que fazer e vem simplesmente ver o que os outros, que fazem alguma coisa, estão a fazer.
Na minha opinião Africa vai continuar nesta situação dramática por muitos anos, e infelizmente isso interessa aos países maus ricos (que também contribuem para esta situação).

Sobre os meus mestres



Ontem fiquei chateado com o Jean-Pierre. Escreveu ao Pascal de uma forma irónica, dizendo que gostaria de ter noticias minhas. Exactamente nesse momento estava eu a escrever um relatório completo da missão, depois de uma semana sem internet por avaria geral. Ele conhece bem a situação, e devia saber que se não escrevi foi porque não pude. Suporto muito mal quando me julgam por ser irresponsável. Mas de seguida lhe respondi dizendo que eu também, gostaria de ter tido noticias dele!

Acho que esse é o segredo da nossa relação sadia, apesar de ele ser o meu chefe e de eu o respeitar como tal, posso-me permitir de pô-lo na linha quando é preciso, e o mesmo se passa no sentido contrário.

A verdade é que nos entendemos lindamente e o congresso que fomos recentemente no Canadá é a melhor prova disso. Aventuramo-nos juntos à descoberta de Montreal e tivemos alguns momentos de intimidade gastronómica muito interessantes.

Longe de querer ser pretensioso e consciente das devidas distancias, considero que temos algumas semelhanças. Em todo caso eu admiro muito o Jean-Pierre e é para mim um exemplo a seguir, um pai, um mestre, um visionário, uma mente brilhante!

Enfim, tenho que lhe agradecer a ele e a algumas outras pessoas que tenho cruzado nestes ultimo anos da minha vida por me terem ajudado a ultrapassar as minhas expectativas em relação a mim mesmo.

Bom, chegou a hora de partir trabalhar, amanhã voltamos ao lago, será a despedida até Janeiro do próximo ano. Vou sentir a falta dele...

Ainda não fui e já tenho saudades



Bukavu, 01/09/2003


São 7h da manhã e eu já estou pronto para sair e apanhar da carrinha de 9 lugares do ISP que sai todas as manhãs da casa do DG às 7h50. Às 20h da noite já estou na cama, falta de melhor para fazer... Começou a contagem decrescente para ir embora, dentro de menos de uma semana estarei de volta a casa. Este tempo todo a viver nestas condições começa a cansar! Mas apesar de tudo guardo excelentes recordações, principalmente do lago. No lago esquece-se tudo, é a porta para o céu, o reino da paz, da calma de uma beleza deslumbrante.
Uma das coisas que levaria comigo (e que levo na memória) era a música. Ouve-se cantar por todos os lados: em casa, na rua, no autocarro, na igreja. Cantam para esquecer a miséria da vida! Mas a beleza desses cantos é única e faz-me falta, enche a alma. A música do canto dos pássaros, que mesmo pequenos do tamanho de um pisco, soltam um canto inédito para o meu ouvido. A música única das rãs do Kivu (Xenopus vestitus) ao cair da noite que mais parecem vindos de outro planeta... Para não falar dos banhos de balde de água morna que saía do destilador que me sabiam pela vida. Mas sobretudo as pessoas que cruzei, mesmo no taxi, quando tinha que trocar de taxi na praça Nawera, ou quando tivemos um acidente de taxi que partilhava com pessoas que não conhecia, já era de noite e estava um pouco perdido sem saber bem o que fazer... Havia sempre alguém que vinha para perto de mim, pegava na minha mão (acto muito comum em África mesmo em pessoas do mesmo sexo, que tem um significado de amizade) e me tranquilizava com palavras amigas dizendo, "não te preocupes, não estás sozinho, eu acompanho-te".
Sempre me senti muito bem recebido, mesmo bem demais para a minha simples pessoa. Só me incomodavam algumas pessoas que me reclamavam dinheiro, pensando que eu era da ONU, mas após uma breve explicação tudo se resolvia. Havia no entanto muitos que ficavam incrédulos quando contava que também havia brancos com pouco dinheiro.

De volta a Bukavu



Bukavu, 29/08/2003
Estamos no final da estação seca e de volta a casa levamos com uma tempestade estrondosa. Descarregar o material no lamaçal não é tarefa fácil...


Apesar de tudo estou bastante satisfeito da forma que correu a missão. A comida vai de mal a pior. Hoje a panela com peixe fumado (Lates stappersii, do lago Tanganyika) e outra de arroz branco imaculado foram direitinhos para o lixo. "Para o lixo" é uma maneira de dizer, porque aqui não há recolha de lixo. As galinhas e o cão do vizinho já deram por ela que aqui têm todos os dias de comer... O meu receio é que o vizinho note que os seus animais esqueléticos têm engordado nos últimos tempos. É que o vizino é o DG (Directeur Générale) do ISP e temo que vá dizer alguma coisa ao Pascal (fiz um acordo com a esposa do Pascal que ela me fazia de comer todos os dias por 100 US$ durante 3 semanas). Entretanto as minhas calças já me caem pelas pernas abaixo. Já devo ter perdido uns quilos.
Já só falta uma semana para voltar para casa. Começa a ser difícil suportar a falta de internet, os cortes de electricidade constantes, os cortes no abastecimento de água, a falta de frascos limpos para guardar as amostras e fazer as analises no laboratório, a falta de água quente, a falta de tudo... e principalmente da Andreia!

Nyiragongo, o vulcão proibido



Para a dormida ficamos na casa de visitantes do Observatório Vulcanológico de Goma, a cargo do Prof. Bajope. Na estrada entre o porto de Goma e o Observatório as pedras de lava são abundantes e afiadas. Entrando na estrada principal da cidade notam-se os efeitos devastadores da ultima erupção do Nyiragongo: um rio de lava cortava a cidade em duas, em Janeiro de 2001.Hoje a estrada ainda está cortada mas os carros podem passar circular sobre a rocha.
Dos edifícios que resistiram à fúria da lava, apenas se encontra disponiveis a partir do 1° andar, que agora está ao nível do solo. Atrás da cidade a sombra imponente e sempre presente da enorme cratera.
Prof. Bajope explica que o cume da cratera atinge os 3470 m em relação ao nível do mar, ou seja, 2000 m acima do nível do lago. A ascensão ao cimo da cratera é possível em 6 horas de marcha pela encosta a pique. Uma vez no cimo pode-se descer ao interior da boca do vulcão. 700 m mais abaixo um lago de lava e um ar carregado em gases tóxicos.

Este foi o panorama que encontrou Tazieff em 1972 quando pela subiu primeira vez de forma clandestina ao cimo da cratera, contra a vontade do então presidente Mobuto, que nunca lhe deu a autorização para explorar o vulcão, pois os espíritos ficariam zangados e só se podia imaginar o pior como vingança das almas misteriosas que habitam o Nyiragongo.

Chegada a Goma



A chegada a Goma tínhamos Ali à nossa espera. Ali é um Libanês dinâmico e empreendedor que cada vez que chegamos aqui nos recebe com a sua enorme hospitalidade. Sambaza (sardinha do lago Kivu) enrolado em um pedacinho de massa frito, batatas fritas, carne, salada. Um sonho, Ali é um salvador. Depois da dura travessia nada melhor do que ter Ali à nossa espera.
Na verdade Ali está muito grato ao Prof. Kaningini porque durante a ultima erupção do volcao Nyiragongo a sua casa foi engolida pelas lavas e mudou-se com a sua família para a casa do Prof. durante algumas semanas, até poder começar a reorganizar a sua vida. E assim a vida inconstante em África, nunca se sabe o que pode acontecer no dia de amanha.
Mas isso já pertence ao passado e a verdade é que os negócios de Ali prosperam. No dia em que chegamos acabava de vender o seu automóvel, explicava. Saímos para fazer amostragem, e na volta, ao final da tarde já tinha comprado outro carro, um Toyota importado do Dubai.
Antes do Congo, Ali vivia na Serra Leoa, o que me fez pensar que se calhar a pesca não é verdadeiramente a sua actividade principal. Há vários Libaneses em Goma, e concerteza que vários mercado ilícitos e aliciantes proliferam ao mesmo tempo que a guerra. Mas naquele momento nem pensei sequer duas vezes, tal era a fome e o cansaço.
... A fome e o cansaço, a vida dura, aqui estão varias razoes que contribuem ao enfraquecimento da alma, facilitando a caída nas malhas da corrupção.
Já tivemos chagadas mais agitadas. Na ultima campanha saímos um pouco mais tarde da ilha de Idjwi, o lago estava muito agitado, com ondas enormes, anoiteceu, e perdemos o ponto de referencia da chagada. Não sabíamos se íamos chegar num lado ou do outro da fronteira entre o Congo e o Ruanda, e se fosse do lado do Ruanda,teríamos sérios problemas. Concerteza seriamos recebidos a tiros e se saíssemos vivos seriamos julgados por trafico de alguma coisa. Em todo o caso teria sido muito complicado explicar o que estávamos a fazer no lago aquela hora com uma piroga do Congo, no lado de la da fronteira. Por sorte, antes de nos aproximarmos da costa ligamos para Ali que nos guiou com sinais de luzes com uma lanterna potente para podermos identificar de longe a direcção a tomar.

Beleza e mistério em Kabuno



Goma, 28/08/2003

A travessia fez-se sem sem sobressaltos, mas confesso que sinto sempre receio e não prego olho durante a viajem durante a madrugada. Como diz Pascal, 'quando os deuses do lago se enervam', a travessia transforma-se em um filme de terror: no meio do oceano numa casca de noz...
Felizmente desta vez foi tudo com muita tranquilidade e estamos de volta a casa. Neste ponto preciso do lago não se avista terra em nenhuma direcção, o que exalta um certo respeito e dá a verdadeira noção das dimensões do lago. Num raio de 50Km na horizontal e 500m na vertical, uma massa gigantesca de água doce. Mais uns 50Km na zona sul do lago, ponteada de ilhas de todas as formas e dimensões.
Ontem estive pela segunda vez na minha vida num lugar mágico e misterioso: a baía de Sake ou Kabuno. Trata-se de uma baía muito fechada no extremo noroeste do lago, as águas têm uma aparencia calma e está rodeada de rocha de lava muito recente. Fala-se de uma erupção no final do século XIX que tería formado esta baía.

No entanto, um verdadeiro demónio esconde-se debaixo destas águas tranquilas: a concentração de CO2 a 20m de profundidade é equivalente à de 300m na bacia principal do lago, e uma erupação gasosa é eminente. A apenas 10m de profundidade as águas sáo 1°C mais quentes que na superficie. A amostra de 20m chega à superficie e a agua 'gasosa' deita um cheiso sulfuroso bastante desagradável. A garrafa de amostragem vem coberta de uma pelicula negra. Esta noite o vento deve ter depositado uma camada de cinza do volcão que está aqui ao lado...
Uma pequena passagem de 20m de largo e 16m de profundidade separa esta baía do resto do lago. A direita um morro vertical imponente com uma vegetação esplendida. Aqui no norte Kivu as terras são negras muito ferteis, em vez da lama vermelha de Bukavu.

A campanha continua



Estamos na estação seca e os ventos alísios do sudoeste sopram continuamente. Não faz falta ser um cientista para adivinhar que isso reflecte-se na agitação das águas e a navegação é bem mais complicada e arriscada nesta época do ano. A estrutura térmica vertical do lago (a estratificação) também se vê afectada nesta época do ano, e as águas superficiais do lago recebem assim o “adubo” natural proveniente das águas mais profundas ricas em nutrientes. Com esta agitação provocada pelo vento esses nutrientes alcançam zonas com luz solar e são imediatamente assimilados pelas microalgas, o fitoplâncton. Resulta que o lago é mais produtivo em plâncton nesta época do ano. O zooplâncton (pequenos invertebrados aquáticos) proliferam apenas algumas semanas depois das autenticas “pastagens verdejantes” produzidas pelas microalgas, e os peixes (que se se alimentam em grande parte de zooplâncton) têm também o seu momento de bonança. Esse período de fartura só se reflecte nas pescas uns meses mais tarde, quando as pescas de sambaza (pequena sardinha endémica do lago Tanganyika que foi introduzida no lago Kivu no final da década de 50) atingem o auge, por volta do mês de Dezembro.
Mas voltemos à nossa viajem. Nas margens vêm-se as marcas do nível das águas durante a maior parte do ano (estação das chuvas). Durante os 3 meses de estação seca o nível do lago baixa uns 30 a 60 cm. As encostas descem a pique, e apenas a 10 metros da margem já estamos a mais de 50 metros de profundidade.
Nas numerosas ilhas, que são na realidade os cimos de montanhas subaquáticas, obviamente não há electricidade. Apesar disso há um número considerável de gente que habitas estas ilhas, a julgar pelo número de pirogas e de casa de palha. Se em Bukavu é raro ver um muzungu aqui é raríssimo! Cada paragem para comprar uns ananases e bananas revela-se um acontecimento que mobiliza aldeias inteiras. A notícia espalha-se em dois tempos e todas as pessoas largam as suas actividades e descem correndo para ver o muzungu.

Entre a limnologia e a morte



Ilha de Idjwi, 26/08/2003

Paramos para a amostragem que se faz cada día às 11h30 em ponto. Os grandes obreiros deste projectos, Silas, o piloto, Djoba, o assistente, Douglas e Camulete, os ajudantes, metem mãos à obra. São todos pescadores que aceitaram fazer parte desta equipa bem rodada, pois há mais de ano que o fazem em Ishungu, a duas horas de piroga de Bukavu, cada duas semanas. Os técnicos, Massylia e Georges, e os cientistas Pascal e eu nos activamos simultaneamente no espaço limitado do Kivu Explorer. Somos 8 membros da tripulação no total. De maneira quase automática, Djoba começa a amostragem de zooplâncton com uma rede enorme especialmente desenhada para o lago Kivu. Todo o material tem que ser maior do que o que se utiliza normalmente nos lagos menores a que estamos habituados em regiões temperadas, mas não tão grandes quanto os que se utiliza em oceanografia... a meio caminho!

Silas larga o motor para se dedicar à garrafa de Van Dorn. Trata-se de um cilindro com a capacidade de 6 litros, aberto nas extremidades. Quando este se encontra à profundidade desejada envia-se um mensageiro que não é mais do que um peso de metal que activa um mecanismo que tapa as duas extremidades do cilindro e permita trazer até à superfície uma amostra de água da profundidade desejada. Também levamos connosco o Hidrolab que se trata de uma sonda multi-paramétrica que mede simultaneamente temperatura, pH, conductividade, oxigénio... Trata-se um aparelho muito caro e pesado que trouxe na bagagem comigo desde a Bélgica, mas que nos fornece informações preciosas sobre as quais repousa todo o resto.


O termo que designa a ciência que estuda os lagos, a limnologia, vem do grego limnos, que significa camadas. Provavelmente pouca gente se apercebe, mas existe uma diferença entre a definição de lago e lagoa ou charco. Para ser um lago, tem que se observar uma estratificação térmica, ou seja um acamada superficial mais quente e uma outra camada de água mais profunda mais fria. Tal como o óleo e o azeite, estas duas camadas não se misturam enquanto se mantiver esse gradiente térmico. Apesar de fazer referencia aos fenómenos tipicamente lacustres, o âmbito da limnologia abrange o estudo de águas continentais em geral.

Os lagos tropicais grandes e profundos como os lagos do Rift do leste africano são estratificados permanentemente, por isso designam-se de meromicticos. A sonda multi-parâmetros permite-nos delimitar estas camadas e caracterizá-las através do estudo das amostras que recolhemos a diferentes profundidades. O fitoplâncton é o compartimento vegetal constituído por algas microscópicas que realizam a fotossíntese e formam a base alimentar da cadeia trófica que qualquer sistema aquático. Para estimar a sua produção em termos de carbono assimilado por unidade de tempo procede-se à medida de produção primária, a que Silas e os seus companheiros chamam graciosamente de “pêche primaire” (pesca primária).

A ilha de Idjwi divide o lago em dois. Desde a ponta norte da ilha até Goma, mais uns 40 Km de caminho, mas desta vez sem ver a costa, o que da uma estranha sensação de estar em alto mar.
A chuva de fim de tarde chega enfim e consigo o início tímido da estação das chuvas. Na estação seca os ventos podem ser violentos e isso reflecte-se na agitação das águas e pode ser bastante arriscada a travessia da bacia norte do lago. As ondas em “alto lago” podem chegar aos 3 metros e sobretudo têm uma frequência muito elevada, quer dizer que há muito pouco tempo entre uma onda e a seguinte. Outro factor que torna a navegação neste tipo de lagos muito arriscada é que as ondas não guardam uma direcção constante, e quando a piroga, já de si não muito grande, se encontra no meio de uma tempestade tropical dá a aterradora sensação de uma casca de noz num inferno de dilúvio. Sentado na piroga vejo as ondas aproximarem-se perigosamente, mais altas que a própria borda da piroga... Vêm de todos os lados e sã incessantes... fecho os olhos e rezo no silencio absoluto compartido pelos 8 membros da tripulação! Pela primeira vez vejo a morte à minha frente.

Enfim sobre as aguas do lago Kivu: inicio de campanha



Bukavu 26/08/2003

Já estamos no lago, a caminho de Goma, a bordo do Kivu Explorer a nossa humilde embarcação que mandamos construir à nossa medida. Dentro do habitual (embarcações tradicionais) esta é uma piroga enorme e sofisticada!
Ao contrário da primeira campanha que tínhamos feito em Janeiro, a atmosfera apresenta-se pouco translucida. Uma espécie de bruma espessa cobre o cimo das montanhas que envolvem o lago e o transformam num lugar mágico e absolutamente único. É a estação seca, e a ausência de chuva, juntamente com o vento por vezes forte, mantém uma camada de poeira no ar que limita a visibilidade. Trata-se da visão típica de época seca que se estende de início de Junho a finais de Agosto.
As inúmeras e minúsculas ilhas que emergem a cada passo deixam adivinhar o fundo montanhoso que se esconde debaixo destas águas ligeiramente turvas, repletas de vales profundos. Alguns desses vales mais para o lado norte e este alcançam os 490 metros, a profundidade máxima do lago. No entanto, é muito comum lançar a nossa ancora, que na verdade se trata de uma peça de motor de automóvel amarrada a uma corda, e que esta não chegue ao fundo, sabendo que a nossa corda tem uns 150 metros. As misteriosas águas do lago Kivu...


O lago esteve calmo durante a manhã e início de tarde.As primeiras chuvas que anunciam a chegada da época das chuvas estão a chegar, e as primeiras gotas começam a cair por volta das 4 da tarde. Uma leve brisa anuncia momentos mais agitados... Seguimos ao largo da grande ilha de Idjwi pelo lado Oeste. Dizem que é a maior ilha continental do planeta e a verdade é que é percorrer os mais de 50 Km de comprimento com a nossa piroga equipada com um motor de 25 cavalos parece uma viagem interminável.

A ciência nos trópicos: contemplação




Bukavu
25/08/2003

Ontem descobri na biblioteca do ISP (Institut Supérieur Pédagogique) o livro de L. Van Meel: Exploration des Grands Lacs Africains, 1946-1947. Van Meel era um belga que, juntamente com H. Damas nos anos 30, dava os primeiros passos na hidrobiologia dos grandes lagos do Rift.
O papel de cientifico confunde-se com o de poeta, nos manuscritos daquela época, e os livros científicos que escreveram tem algo em comum epopeias de descoberta de novos mundos.
O texto cientifico é bastante descritivo (era a primeira vez que se descreviam tais coisas) e se fosse me verso seriam uns verdadeiros Lusíadas.
E admirável o trabalho destes homens. Imagino como seria naquela época chegar até aqui com todo o material cientifico e com as amostras dos diferentes organismos, que levavam de volta para a metrópole e distribuíam pelos maiores especialistas de cada grupo taxonómico.
Na missão de H. Damas (1935-1936), algumas das amostras de fitoplâncton do lago Kivu foram entregues a um certo P. Frémy, grande especialista da época na identificação de microalgas. Naquela época, a noção de tempo era outra, e o processamento destas amostras tardou até que chegou a 2ª Guerra Mundial, e Frémy desapareceu. Provavelmente foi mais um dos que pagou com a vida as atrocidades de outros... Mais tarde W. Conrad, em 1949 consegui reunir as notas pessoais de Frémy e publicou finalmente o que seria o estudo mais completo do fitoplâncton do lago Kivu até 1987. Foi neste ano em que R. Hecky & H. Kling publicaram os primeiros resultados quantitativos do fitoplâncton do lago Kivu, depois de terem processado amostras que R. Hecky tinha recolhido em 1972, de passagem pelo lago Kivu.
Nos trópicos a ciência é diferente: H. Damas, L. Van Meel, P. Kilham (falecido no lago Victoria em plena campanha de amostragem!), todos eles cientistas brilhantes, mas igualmente rendidos à obra de Deus. Trata-se da tomada de consciência da impotência humana perante tal esplendor. Aqui não se pode ter a arrogante pretensão de conhecer todos os nomes das aves que vejo desde a janela do jardim, tal é a dimensão da variedade e de complexidade biológica. Aqui, o puro cientista da precisão e exactidão não tem muito futuro. Por vezes é necessário render-se à razão do irracional e limitar-se a contemplar aquilo que Deus nos decide mostrar, com humildade e gratidão.

Trabalhar em áfrica é bonito mas não é facil



Bukavu 24/08/2003



Esta manhã acordei com o cantar dos pássaros. Nos fins de semana passo horas a observar a variedade exuberante de cores e de cantos de pássaros presentes num simples jardim de alguns metros quadrados, nas traseiras da casa. No jardim, uns pés de mandioca, seis bananeiras, uma cana de açúcar, uma árvore de papaia e umas tantas palmeiras. O bairro chama-se Muhumba. E bastante arborizado, florido e calmo, o que atrai bastantes aves. Trata-se de um braço de terra rodeado por aguas do lago, no seu extremo sul.

Hoje, em particular, tenho tempo de apreciar estas aves pois resolvemos trazer o destilador (um aparelho que aquece água da torneira até à ebulição e recolhe o vapor de água num recipiente, tratando-se de agua destilada, essencial para o nosso trabalho no laboratório) e tenho que cuidar dele (verificar que a temperatura e o fluxo de agua se mantêm relativamente constantes, coisa que não é nada trivial com as variações de pressão na a água da torneira, e também na tensão da corrente eléctrica). Há três dias que havia água da torneira no laboratório, e necessitamos desesperadamente de água destilada para a análise de fosfatos, nitratos amónio... nas amostras de água do lago que tínhamos recolhido na véspera. Estes nutrientes inorgânicos são essenciais para o desenvolvimento do fitoplâncton, a produção vegetal microscópica que forma a base da cadeia alimentar em qualquer sistema aquático.

Como a MONUC (Missão das Nações Unidas para o Congo) está instalada aqui em Muhumba, a corrente eléctrica é estável e é raro haver cortes na água corrente. Por isso decidimos trazer para cá o destilador e assim garantir a continuidade do trabalho nos dias seguintes.

Recompensa de toda esta paciência de vigiar o destilador? O indescritível prazer de um banho de agua quente! O destilador produz uma certa quantidade de desperdício de água quente que eu recolho cuidadosamente em bacias de plástico e baldes e guardo preciosamente para até à hora do banho. Nada mau! Já consegui uns 20 litros e já vou a caminho do segundo balde. Vou-me regalar com banho de agua quente abundante.

Todo este tempo (aparentemente morto) de um domingo de manha convida à reflexão: Como a mais simples das coisas se torna tão complicada por aqui.E assim, a luta continua. Acho que é esse o grande mérito deste projecto, fazer o impossível, e fazê-lo bem!


Equipa de amostragem formada de pescadores reciclados em técnicos ciêntíficos

(mostram, orgulhosos, o presente do muzungo: umas simples capas de chuva)


Enquanto nos aqui passamos horas a cuidar de um destilador, na Europa ou nos Estados Unidos já se está a escrever o artigo cientifico e a publicar os resultados. Confesso que por vezes é difícil encarar esta realidade e até desencorajador. E como participar no Tour de France e saber à partida que não podemos competir pela camisa amarela. Temos que nos conformar com a possibilidade remota de um prémio de montanha, quando muito.

Mas há que continuar, com entusiasmo e com a convicção de que o que estamos a fazer é importante.

Montagem de uma estação meteorológica no tecto do edifício do ISP de Bukavu


Breve descanso na piroga entre dois pontos de amostragem


Estranho onde nos leva o pensamento por vezes... estava aqui a pensar que, durante todo o meu percurso, desde sempre procurei dificuldades, sarilhos... Não sou capaz de me motivar com coisas fáceis.

Aqui, o pouco que faça, implica um esforço enorme, e sei que isso é mais importante para as pessoas daqui que uma grande descoberta num pais ocidental.

Estou plenamente convencido que o potencial cientifico em regiões tropicais e principalmente nestes grandes lagos do leste africano, é enorme, comparado com os pequenos rios e lagos artificiais (barragens etc.) da Europa.

Estilos de vida



Bukavu 22/08/2003

No final da tarde, à saída da casa de Pascal parei estupefacto (como sempre que passo por aquele lugar) com a actividade e o burburinho que vinha do lado de lá do vale. E uma encosta recoberta de barracos, uma autentica favela gigante, maior dos todas as que tinha visto no Brasil. Trata-se do bairro de Kaduto. A maior concentração de habitantes por metro quadrado no país inteiro, dizem (se bem que duvido que haja algum tipo de estatísticas deste género na R.D. Congo). Nem em Kin (Kinshasa) existem bairros assim, dizia Pascal.


Chega o final de tarde, o por do o sol detrás das montanhas e o lago escurece e reflecte a lua ligeiramente à direita. E a minha hora do dia favorita, inspira-me... Por cima das nuvens que se aproximam no horizonte os flashes de luz provocada pelos relâmpagos longínquos iluminam o céu por alguns instantes. E a estação das chuvas que se anuncia. É neste contexto sublime que iniciamos uma conversa sobre a origem dos fenómenos urbanos num pais como a R.D. Congo, sobre o estilo de vida tradicional (das aldeias) actualmente e antes da chegada do muzungo (homem branco). Estava curiosíssimo por saber se ainda existiam as imagens a preto e branco que habitavam o meu imaginário (provavelmente inspiradas por algum dos livros de exploradores pioneiros que tinha lido), com corpos decorados com cicatrizes, brincos e piercings, penteados com penas e/ou ossos, a exuberância das tribos desligadas do mundo ocidental. Pascal, perspicaz, sente imediatamente o meu entusiasmo e começa de seguida a relatar um pouco da sua experiência pessoal de quando era criança na sua aldeia, a menos de uma centena de quilómetros de Bukavu. As cicatrizes em forma de estrela nas mulheres e os dentes talhados em forma afiada eram sinais de beleza. Nos homens, a cicatriz da testa até à ponta do nariz dividindo a cara em duas partes simétricas, era o remédio contra as dores de cabeça, dizia Pascal apontando para o seu pai que se encontrava ali sentado. Quando desvio o meu olhar para o seu pai que estava ali sentado, surpresa! Era mesmo verdade, o pai de Pascal tinha a cicatriz em forma de risca na face! Ainda não tinha reparado.
Obviamente, todos estes sinais exteriores são formas de comunicação não verbal inatingível para o muzungo... Por exemplo, na Europa, quando me dirijo a um desconhecido na rua, e se ele tiver uma certa idade e vestido de fato e gravata, naturalmente vou trata-lo pela terceira pessoa.
Pascal explica perante o meu ar de admiração que ainda hoje, apenas a alguns quilometro de distancia dali, o dia-a-dia em qualquer aldeia continua a ser assim. Dentro de uns meses, se a situação politica o permitir, poderemos visitar algumas dessas aldeias. Outra das coisas que temos que ver são os gorilas de montanha, a cerca de uma hora de Bukavu de carro, na costa leste do lago. Hoje em dia os gorilas partilham a montanha com os militares e é demasiado perigoso aventura-se por essas bandas...

De onde vêm as coisas?



Os dias vão passando, a campanha de 3 dias no lago aproxima-se. Saímos de Bukavu, no extremo sul do lago e vamos até Goma, na ponta norte. Passamos pela mágica baía da Sake (ou Kabuno), pernoitamos no paraíso esquecido que é a ilha de Idjwi, (das numerosas ilhas existentes no lago Kivu esta é a maior de todas) e voltamos a Bukavu. É duro, principalmente as horas sentado na piroga, os risco constante de uma tempestade tropical e a fome: não é fácil aguentar tanto tempo apenas com algumas bananas para entreter o estômago. Com um bocado de sorte em Idjwi poderemos comprar uns ananases deliciosos. Também levamos abacates e batata doce que compraremos no porto de pesca de Bukavu no ultimo momento antes de embarcar. Uma mistura surpreendentemente deliciosa.


Mas desta vez vou prevenido. Guardei todas as minhas reservas para estes dias. Tenho um chouriço belga Marcassou saucisson d'Ardenne, um pedaço de queijo, um patê de carne de vaca que comprei por cá. Repara agora ao olhar para a lata que tem o rótulo em árabe e diz "made in Brazil"... Estranho! Certamente vem do Dubai. Há muitas coisas estranhas aqui no que toca à origem dos produtos. senão veja-se:
Agua: Source du Nil (Uganda, Ruanda?)
Margarina (que aqui se usa como se fosse manteiga): Nairobi (Quénia)
Papel higiénico:letras em chinês
Lenços de papel: letras em árabe
Automóveis com matriculas que dizem Dubai Export
Café: Burundi
Nos mercados vêm-se igualmente produtos variados da marca branca do supermercado Colruyt - Bélgica: guardanapos, esparguete, vinagre.
Ponho-me a imaginar o percurso de todas essas mercadorias entendo porque chegam aqui com o mesmo preço ou mais caras que na Europa. Só de imaginar que aqui a esmagadora maioria das pessoas vive com menos de 1 dólar por dia...
Pascal, professor universitário, tem um salário de 85 dólares/mês. É considerado como classe média (um dos raros representantes desta classe social).

Depois da tempestade a bonança e logo, outra tempestade



Massylia, recém licenciado em Biologia, foi aluno de Pascal no ISP de Bukavu. Hoje faz parte da equipa de investigação. O entusiasmo e o interesse pelos temas de investigação (ou talvez a falta de melhores perspectivas) fizeram com que se tornasse num fiel colaborador com quem podemos contar nas campanhas de amostragem. Neste momento é um elemento essencial na equipa e por isso investimos muito tempo e energia na sua formação científica.



Mas o passado nem sempre foi tão risonho para Massylia. Ainda há um par de anos atrás, ali estava ele, sozinho na cidade de Bukavu em estado de sítio. Os seus pais e os seus 7 irmãos tiveram que fugir para a povoação de onde eram originários, a 400Km de Bukavu no interior da selva equatorial da bacia do rio Congo. Ele ficou para guardar o barraco onde viviam na cidade para evitar que os militares ocupassem a única coisa que possuiam. Uma semana de caminhada selva a dentro!
Com um sorriso daqueles que "rio para não chorar" continuava a contar a sua história: de vez em quando lá ia e voltava à povoação, mas não podia ficar muito tempo fora, pois ao mínimo sinal de abandono, as casa eram ocupadas pelos militares.

Se houvesse uma casa com mulheres ou crianças, os militares entravam e violavam-nas em frente dos maridos, antes de os matar... Alguns pais eram obrigados a entregar as suas próprias filhas para poderem salvar os resto da famíla. Por essa razão a casa de Massylia não apresentava um grande interesse para os militares. Soube mais tarde o laboratório onde trabalhávamos no ISP tinha também servido de abrigo e de armazém de munições nessa época.

Massylia contava como era difícil encontrar comida nessa época, e o choque de se deparar com corpos defuntos nas avenidas cada manhã.

E imaginar que cada pessoa que cruzo na rua tem a sua história, uma mais dramática e inimaginável que a outra. E uma memória colectiva desta gente que já não tem mais em que acreditar. Agora entendo por que é que a visita do ministro (ex-rebelde, chefe de um grupo militar) não suscitou muito entusiasmo em Bukavu.

E a pergunta persiste, como deixamos acontecer isto sem que nenhuma linha de jornal, nenhuma imagem de televisão tenha passado nas nossas casas ocidentais?

Ontem havia electricidade em casa do Pascal. Aproveitei para ver um pouco de televisão e acabei por dormir em casa dele para contentamento dos miúdos. Rapidamente fiquei enjoado com o telejornal francês da TV5: noticias de greves, de mortes por calor, de situação catastrófica do sistema de saude e do estado decadente do governo em França. Que mais sera preciso para acordar estas mentes adormecidas, hipnotizadas que não querem ver o mundo em que vivem? Como pode uma luta sindical representar a prioridade máxima de uma alma, na ansia de ganhar mais umas horas semanais de ócio, enquanto a 5 horas de voo dali milhares e milhares passam fome, morrem na guerra sem saberem bem porquê. Quem sabe morreram e continuam a morrer para sustentarem esse ócio a que nos habituamos no mundo ocidental!...

Pascal, eu e Massylia (atrás, vista das instalações do ISP de Bukavu)

A esperança alimenta a vida



Bukavu, 23/08/2003:
Sente-se a reunificação e o fim da guerra na atmosfera. Pareço ser o unico a pensar que vivemos momentos históricos. Quando comento aos meus amigos congoleses os sinais positivos de estabilidade e prosperidade, sistematicamente me respondem: "já assistimos a isto tantas vezes antes..."

A grande revelação do momento em Bukavu são as novas redes de telemóvel congolesas que se instalam pela primeira vez no leste do país e ameaçam o monopólio da única companhia que fornecia esse seviço e que era Ruandesa.

Por estranho que pareça o telemóvel aqui é um instrumento banal ao alcance de todos. Sente-se nas conversas de rua o orgulho nacional: "já mudaste de rede? Estás na Celtel ou na Vodacom?" E quase visto como um crime manter-se na rede Ruandesa, uma traição à nação...



A maioria dos estabelecimentos comerciais tiveram direito a uma pintura nova cor de laranja oferecida pela Celtel, ou branca e azul oferecida pela Vodacom. Os imponentes cartazes de marketing de última geração estendem-se nos pontos chave da cidade.



É a boa nova, o sinal do fim da guerra e da reunificação da R. D. do Congo. Até o aumento dos preços para a harmonização monetária no país é tolerado pela população em nome da reunificação. Neste momento poderíamos pensar no salto tecnológico que poderia ser o facto de não ter passado pelas redes fixas e passar directamente à tecnologia móvel. Com tanta riqueza no subsolo, tudo poderia ir bastante rápido, mas as marcas ficaram e em cada momento mais intimo em que tenho a possibilidade de perguntar a alguém como viveu a guerra, os testemunhos cruéis e indescritíveis dizem-me que não há reunificação que apague esse passado sangrento vivido. Mas esse testemunho sera tema para um próximo capítulo. Por agora desfrutemos deste sentimento de esperança que alimenta a vida de cada dia.

A visita do Ministro



Os dias passam e cada vez mais me sinto em casa. E um processo lento e duro de esquecimento de coisas supérfluas. Comer com as mãos, banho frio, barba por fazer, lama nos sapatos, osgas nas paredes do quarto, mosquitos esfomeados e carregados de Tripanossoma agente de transmissão da malária. A pouco e pouco vou esquecendo todas estas pequenas coisas que tornam a vida aqui tão difícil mas ao mesmo tempo tão excitante.
Não tenho memória de me levantar às 6h da manhã todos os dias e com tanta vontade de viver.

Começo também a sentir-me seguro e à vontade para circular sozinho na cidade. Esta manhã apanhei um moto-táxi, do nunca visto por estas bandas; Bazungos (brancos) aqui são ricos, têm jipe como na Europa! Nem de táxi, quanto mais de moto-táxi! Admita-se que trabalhar aqui por 5000$ por mês (como os funcionários da ONU) com casa, comida, jipe, cama e roupa lavada, é um paraíso na terra, apesar dos riscos (limitados porque muzungu está sempre a salvo) para não falar da prostituição a meio tostão...

Hoje recebemos a visita no laboratório do ministro da Educação, recém indicado para o cargo pelo jovem governo de Kabila filho e rebeldes. Televisão, jornalistas, secretários de estado, ministro... o laboratório foi pequeno para toda a comitiva e alguns ficaram à porta, durante as explicações de Pascal sobre o projecto de investigação em curso sobre o lago Kivu.





Os jornalistas faziam sinal ao muzungu para se colocar ao lado do ministro para a fotografia, mesmo se estava com uma barba de 15 dias, umas calças cheias de lama e uma t-shirt larga e castanha de tão suja que estava.

Detalhes do dia a dia por terras de África



Esta manhã aqueci um pouco de água para tomar banho. Decidi que merecia esse pequeno luxo: um banho de agua morna!
Cada vez que penso na banalidade que é abrir uma torneira de água quente na Europa, e SAIR AGUA QUENTE!!! Um banho quente à distância de uma simples meia volta de torneira!
A corrente eléctrica também é um problema por aqui. Nesta zona da cidade nem é muito mau pois é aqui que se encontram as ONG's e a ONU: os que podem!


A banheira lá de casa. Nada mau, infelizmente sem água quente.


Banheira da casa do Pascal e os seus dois filhos mais novos que se divertem no banho. Estas crianças nunca conheceram o abrir de uma torneira em que saia agua quente.

Nesta mesma banheira lavo a minha roupa...

... e seco-a no quarto. a corda de estender a roupa é o fio do telefone. Já há muito que deixaram de existir linhas telefónicas fixas por cá, assim pelo menos o telefone tem alguma utilidade.

Uma das muitas noites solitárias de reflexão e escrita antes de ir dormir.


Mas por exemplo, ontem na sala dos computadores no ISP (fruto de um projecto de cooperação com a Universidade de Namur pode-se por uma dezena de PCs à disposição dos alunos e professores do ISP), ou não há rede ou não há corrente. Raro é o dia em que há ambas as coisas ao mesmo tempo. Pobre Tacho que sempre nos acolhe com um grande sorriso com uma ponta de ar fatídico como quem diz "estou contente em vê-los e dou o meu melhor para servi-los, mas: acuna réseau (não há rede) ou acuna courrent (não há corrente eléctrica). Tacho é o responsável pela manutenção e da organização do serviço, tarefa nada fácil quando se tem tanta gente para tao poucos computadores e ainda por cima com estes problemas de rede e de corrente eléctrica.

Como havia rede nessa manha, decidi pagar 1 litro de gasolina para por o gerador em marcha. Os táxis também andam sempre no mínimo da reserva; metem 1 litro de gasolina de cada vez, às vezes meio litro. Quando juntam alguns trocos de uns poucos clientes la põem o que podem. Pagando o aluguer do carro ao proprietário, ao final do dia já se podem dar por satisfeitos se conseguirem ganhar 1 ou 2 US$.

Do ISP a casa são 4 Km: 100 francos congoleses, cerca de 0.20€. Nas descidas desliga-se o motor e apita-se para as pessoas saírem da frente, apita-se constantemente; Toda a gente sabe que tem que dar prioridade aos carros que trazem lanço desde o alto das colinas, em caso contrario ter-se-ia que por o motor a trabalhar e dar cabo do dia ao pobre taxista.

No mesmo percurso acumulam-se os clientes que podem chegar até 7 mais o condutor dentro de um Tyota Corola Export vindo do Dubai. Crianças não pagam. Dois à frente e cinco atrás e ninguém se queixa da falta de conforto ampliado pelos buracos da estrada.

Entre muzungos que andam la por África diz-se muitas vezes: diz-me que meio de transporte usas e eu dir-te-ei quem és.

Fim de um dia interminavel



De volta a Bukavu, fomos jantar a um restaurante para bazungo (homens brancos): o Mama Kinja.
Banana frita com carne de cabra na brasa e piri-piri. Também havia tilápia (um peixe muito comum nos trópicos), fufu (uma espécie de massa ou pão feito de farinha de mandioca) um esparregado de folhas de mandioca. Uma delícia! Para beber, uma cerveja Primus - made in Bukavu.

Pedi ao motorista que nos acompanhava nesse dia (filho do Boniface, chefe do laboratório) para me levar a beber um copo, depois de deixarmos Pascal e o resto da família em casa. Tinha sido um dia fantástico e estava entusiasmado demais para voltar para casa e dormir. A conversa mudou logo de tom quando sugeri de lhe pagar uma cervejinha.

Entramos no Tel Aviv, um dos numerosos bares dançantes de Bukavu, abertos mesmo em tempo de guerra! Os empregados traziam escrito na camisa TV (acho que por influência dos carros de jornalistas que fazem reportagens durante a guerra e que para serem identificados de longe escrevem TV em letras grandes no vidro da frente e nas portas dos carros. No entanto o bar chamava-se Tel Aviv !?

Dancei bastante e senti o calor humano de uma cidade que mesmo em tempo de guerra canta e dança sem esperança, mas com alegria.

O dia em que fiquei ligado com África para o resto da vida



Esta tarde visitamos Baguira (uma cidade vizinha de Bukavu) depois de um bom almoço. Aliás, a comida começa a estar melhor, talvez seja a fome! Mas aquele arroz com feijão cozinhado em óleo de palma com banana estava delicioso... Aqui em casa também esta melhor. Com 50US$ comprei: 1 queijo, 1 manteiga (aqui só se encontra margarina), 1 patê de carne de vaca, café, sabão da roupa OMO, 12 garrafas de água, 1 tulicreme , 5 pães e 5 maçãs, estes 3 últimos artigos para a família de Pascal. Mama Rachel (a esposa de Pascal) gosta de maçãs, mas não gosta de bananas nem ananás nem abacates... Exactamente o oposto de mim! A natureza humana é universal; deseja-se sempre o que não se tem, ou o que é exótico ou diferente.

À chegada a Baguira depois de uma estrada com uma vista sobre o lago Kivu inesquecível: como sempre, toda a gente me dirige um olhar, e saem-lhes as palavras da boca sem darem por ela: Muzungu! (designação para homem branco em Suahili).

O estado da cidade não é melhor que o centro de Bukavu. Tomamos umas cervejas e comemos uns amendoins. Cozidos! Mas o inesperado estava para vir. Fomos na pickup (sempre 7 à frente e 20 atrás, por caridade dá-se boleia) ver o terreno de futebol situado no fundo do vale. No cimo da colina o cartier militaire. Há que passar rápido para evitar problemas... Os buracos da estrada inexistente fazem com que ande sempre às cabeçadas no tejadilho, e a poeira da estação seca entra pelos olhos, nariz, orelhas... Mas entre a poeira da estação seca e a lama da estação das chuvas não sei o que é melhor. No caminho a estrada acaba num precipício e temos que contornar a cratera gigantesca: glissement de terrain, é a erosão dos terrenos desmatados! Por pouco o campo de futebol lá no fundo do vale desaparecia, coberto com toda a terra da colina que caindo formou uma falésia de dezenas de metros de altura!


Havia jogo: cartier C contra cartier B. Baguira estava organizada em bairros A, B, C e D. Esta organização tinha sido deixada pelos colonos Belgas, pois este era o bairro dormitório dos brancos que trabalhavam emBukavu . Vim a saber mais tarde que este sistema de organização das cidades em cidade para o povo (negros) e a cidade dos brancos completamente à parte se reproduzia em todas as cidades do Congo Belga onde havia uma quantidade significativa de brancos. Não havia a mínima possibilidade de mistura racial! No centro da cidade deBukavu a coisa é bem diferente, actualmente. As ruas não têm nomes e pode muito bem haver a porta número 5 ao lado do número 630. Na verdade escolhe-se o número que se deseja.

O cartier C ganhava e o ambiente estava quente. À nossa chegada todas as atenções se desviaram do jogo e se viraram para o muzungu. Saí da pickup ainda a limpar a poeira dos olhos, e quando os abri estava rodeado de uma centena de crianças que gritavam em coro: Cartier C, coupe! Cartier C, coupe! (Bairro C campeão!). Aquele coro em êxtase manifestando a alegria de ver, de tocar um muzungu deixou-me congelado. As lágrimas caíram-me sem dar por ela. Foi sem dúvida alguma um dos momentos mais tocantes da minha existência . Senti pela primeira vez o verdadeiro sentimento de boas vindas à terra mãe: África! Este instante ligou-me a África para o resto da minha vida. Nunca o esquecerei!


Foi difícil conseguir sair dali. As crianças queriam todas seguir o muzungu até à cidade para anunciar a chegada e cobriram a pickup de forma que nem se podia ver a cor do veículo.




Um sábado em Bukavu



Bukavu, 17/08/2003

De novo em casa... Soube ontem que se tratava da antiga casa do chefe dos rebeldes que declararam guerra a Kinshasa (ou simplesmente Kin como dizem aqui). Hoje estas paredes sujas e os pedaços de tecto caídos abrigam os Profs convidados pelo ISP (Institut Supérieur Pédagogique) de Bukavu.

Ontem foi um dia inesquecível: tudo começou com uma apresentação do nosso trabalho sobre o Lago Kivu para alunos e professores do ISP. Sábado de manhã. Ninguém faltou à chamada! Na verdade, a actividade num sábado não tem nada de diferente de outro dia de semana. Pode dizer-se que é uma semana laboral de 6 dias, e o domingo para ir à missa. Só quando há um casamento é que se muda essa rotina. E parece haver muitos casamentos por aqui! O cortejo passa com o carro na frente: um Toyota ligados mas não em contacto com o vidro, mas em posição de lavagem. Os dois limpa pára-brisas de todas as cores, com as rodas viradas uma para cada lado e com um motor que já não contém nenhuma peça de origem, como a maioria do parque automóvel por aqui. Mas isso não importa, desde que ande! Lá iam os carros, a apitar, com os limpa pára-brisas atados com um tecido brilhante dava um efeito interessante de aceno de bandeirola branca. Mais do que um casamento festeja-se e saboreia-se cada mais um dia de paz. A esperança essa perdeu-se no tempo.
Sabe-se que a reunificação trouxe a calma por alguns tempos e é preciso aproveitar o momento de calma antes do próximo conflito. Os trabalhos de reconstrução começaram mas sem grande convicção pois já se sabe que não vai durar muito.

Mas voltando ao casamento, atrás do carro dos noivos (uma pickup Toyota, claro! O único veículo resistente a tudo, mesmo à ausência de estradas). Na cabine 9 pessoas nos 5 lugares, na traseira umas 20 que cantavam afinadíssimos.


O casamento passou enquanto esperava que o computador funcionasse para fazer a minha apresentação. Foi necessário experimentar 3 computadores mas lá se conseguiu com mais de uma hora de atraso.

Mais do que factos científicos preocupei-me em motivar a plateia para trabalhar os imensos recursos locais em vez de sonharem com uma ida para a Europa para limparem o soalho da Gare du Nord em Paris. Tudo é uma questão de consciencialização do paraíso que este pedaço de mundo poderia ser, com um pouco mais de ordem social.